Peço que tenhamos em mente as
armadilhas que nossos sentimentos e pensamentos solitários ou comungados
parcialmente podem provocar, quando alimentados pelas nossas idiossincrasias,
gostos e opiniões pessoais. Procurem lembrar que relações são alimentadas, para
o bem ou para o mal, baseando-se em níveis de rejeição ou aprovação. O tal:
isso me faz bem/isso me faz mal - gosto/não gosto - concordo/não concordo -
quero assim/não quero assado - o meu é melhor/o teu é pior - do particular ao
geral é nesta dança do eu/meu versus
teu/seu que são cometidas as maiores atrocidades na história da humanidade,
tanto no âmbito privado quanto no coletivo. E começa assim, o individual
descontente que soma a outro individual descontente e que, quando vemos, lá
estão os dois lados se dIgladiando em nome daquela mentira que cada um pensa
ser verdade. E tudo fica reduzido a este patético e nada criativo conflito
alimentador dos egos cada vez mais inflados de suas "verdades" – dane-se
o bem estar do vizinho, da vila, da cidade, do pais, do planeta, da humanidade
- eu quero provar que estou certo e os outros errados. Assim tem vivido nossa
humanidade e é disso que tem se alimentado: conflito, conflito, conflito - e o
final é sempre o mesmo: a banda "boa" achando que destruiu o mal, a
banda "podre". No final saem todos perdendo, sofrendo. Esta é a
fórmula tida como de sucesso e de evolução que a humanidade tem vivido e
acreditado como certa. É assim que nossas sociedades tem se comportado e
"crescido". E na periferia dela, da humanidade, a fome, a violência,
a injustiça, a dor, a magoa, o ressentimento, a revolta.
Faço estes apontamentos, assim tão
enfáticos e abrangentes, buscando comunicar a visão que tenho do quanto o
sofrimento vivido por nossa humanidade tem seu gérmen no seio da parcial
insatisfação individual. Estas insatisfações são nascidas do ego, do eu que
precisa sobreviver preservando a identidade que ele acredita ser a sua; bastião
de sua segurança e sobrevivência física, emocional e psíquica.
Quanta guerra cotidiana eu testemunho
entre os que me são próximos. Quanta voracidade em seus pensamentos e emoções.
Quanto desgaste na constante luta para afirmar a existência de suas
identidades. Eu também percebo isto em mim, e é terrível, cada vez mais
terrível observar a existência e o poder deste "ser" inventado pelo
meu "senso de identidade", e que não sou eu - é uma espécie de tirano
que rouba quem somos e coloca no lugar um zumbi automatizado pelas engrenagens
mais prosaicas dos pensamentos nascidas das memórias medrosas, egoicas,
ambiciosas. Ver este terrível zumbi atuando em mim faz com que eu enxergue
claramente a fonte dos conflitos e, desta forma, consiga refletir: ok, este é o
zumbi - ok, este sou eu - ok, posso optar entre ele e eu - e cada vez mais opto
por quem sou e não pelas memórias psicológicas que tenho da vida, dos outros e
de meus medos e prazeres. Quanto mais percebo a atuação do zumbi em mim, mais o
desmascaro. Quanto mais o desmascaro, menos poder ele tem de obscurecer quem
sou. É um exercício muito simples: tomar consciência apenas - isto já basta,
pois vou me dando conta que me é possível estar consciente de que estou
consciente - uma benção para mim, um horror para o zumbi.
Todos nós, de acordo com cada vida e
contexto, desenvolvemos um olhar sobre como deveriam ser as coisas, e este
olhar deve ser respeitado como elemento que compõe a construção do todo, e não
utilizado para determinar, individualmente, como as coisas devem ser, segundo
valores que no fundo são apenas pessoais. Os integrantes de um grupo, que
optaram por construir juntos este grupo (comunidades, raças, credos, povos),
necessitam compreender a existência dos dois níveis: pessoal e coletivo, e que
o pessoal só cresce, melhora, amplia, se o coletivo (a cultura) cresce,
melhora, amplia.
Isto que escrevi não deixa de estar
baseado em minhas idiossincrasias e é uma visão pessoal de como as coisas
deveriam ser. Mas acredito que há aqui um elemento que talvez ainda não tenha
comunicado completamente, e para o qual usarei uma imagem conhecida da
humanidade a vários milhares de anos: enquanto farinha, óleo, água, sal, açúcar
e fermento não quiserem abrir mãos da existência de suas identidades próprias,
não haverá pão. Como a vida quer pão, ela mistura tudo, sova, deixa crescer,
sova novamente e põe no fogo - e ela faz o pão sem se preocupar com a
preservação do "senso de identidade pessoal" dos elementos que o
compõe. Ao contrário, a ela apenas interessa a identidade que terá o pão. Tem
pão que fica delicioso. Há alguns que ficam ruins. O delicioso, a vida
compartilha e come, alimentando e fortalecendo. O ruim, a vida lança na lata de
lixo e sequer lembra que não ficou bom. E lá ficam farinha, água, óleo,
fermento, sal e açúcar se decompondo, fazendo sentido apenas os
micro-organismos, vermes, moscas e congêneres - o que também é um serviço
prestado à vida, mas... venhamos e convenhamos...
Que espontânea alegria eu percebo em
mim ao me dar é na direção de fazer parte o pão delicioso, para ser
compartilhado. Não deixo de ser farinha ou água ou fermento, etc., e não quero
que os outros elementos deixem de ser o que sejam, mas o que sou e o outro é só
tem sentido se compõe para o alimento. Caso não, tristeza, frustração e
alimento para o zumbi, que se fortalece e volta a tomar conta, com toda a sua
verborragia vitimoza e convicta de que no outro o inimigo está sempre prestes a
se revelar.
To com fome e quero pão do bão!
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